Quem pode celebrar a eucaristia?



Escrito por: D. Estevão Bettencourt

Em Síntese: A S. Congregação para a Doutrina da Fé, com data de 06/08/83, publicou uma Carta em que rejeita teorias recentes segundo as quais a Eucaristia poderia ser validamente celebrada por fiéis cristãos que não tenham recebido o sacramento da Ordem. Tal tese contradiz aos propósitos do Senhor Jesus formulados no Evangelho (cf. Lc 22,19s; lCor 11,23´25), como também à estrutura da Igreja ´ Corpo de Cristo, no qual há diversas funções definidas por vocação do próprio Deus. A participação no sacerdócio de Cristo conferida pelo Sacramento da Ordem difere em essência, e não apenas em grau, da participação outorgada pelos sacramentos do Batismo e da Crisma; cf. Constituição Lumen Gentiun nº 10. A Tradição cristã guardou ciosamente as noções de Igreja e sacramento recebidas do Senhor Jesus; hoje tais concepções são reafirmadas a título de serviço prestado pelo magistério da Igreja à verdade revelada e à unidade da Igreja. Não se trata, no caso, de extinguir a função dos ministros extraordinários da Eucaristia, reconhecida pelo novo Código de Direito Canônico, cânon 910. Com a data de 6/08/83, a S. Congregação para a Doutrina da Fé publicou uma Carta dirigida aos Bispos e, por meio destes, aos presbíteros e aos fiéis, a propósito do ministério do sacrificio eucarístico; segundo novas correntes teológicas e pastorais, o sacramento do Batismo mesmo capacitaria o cristão, em determinadas circunstâncias, a celebrar validamente a Eucaristia, convertendo o pão e o vinho em Corpo e Sangue do Senhor Jesus. Dada a importância de tal documento, publicaremos, a seguir, o seu texto, ao qual se seguirá breve comentário. Logo de inicio, faz´se mister observar que o problema não versa sobre a distribuição da S. Eucaristia por parte de leigos (como inadequadamente anunciou a imprensa), mas, sim, a pretensa consagração do pão e do vinho por leigos para que se tomem o corpo e o sangue de Cristo.

1. Introdução 

1. Quando o Concílio Vaticano II ensinou que o sacerdócio ministerial ou hierárquico difere essencialmente, e não apenas em grau, do sacerdócio comum dos fiéis, exprimiu a certeza de fé de que somente os Bispos e os Presbíteros podem realizar o Ministério eucarístico. Com efeito, embora todos os fiéis participem do único e idêntico Sacerdócio do Cristo e concorram para a oblação da Eucaristia, só o Sacerdote ministerial está habilitado, em virtude do sacramento da Ordem, para realizar o Sacrifício eucarístico in persona Cristi (personificando Cristo) e para oferecer em nome de todo o Povo cristão.

2. Nos últimos anos, porém, começaram a ser difundidas e, por vezes, a ser postas em prática opiniões que, negando estes ensinamentos, ferem no mais íntimo a vida da Igreja. Tais opiniões, divulgadas sob formas e com argumentos diversos, começam a aliciar os simples fiéis, quer pelo fato de se afirmar que elas possuem uma certa base científica, quer pelo fato de se apresentarem como solução para as necessidades do serviço pastoral das comunidades cristãs e da sua vida sacramental.

3. Por isso, esta Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, movida pelo desejo de prestar aos Pastores de almas os próprios serviços, com espírito de afeto colegial, propõe´se chamar a atenção, com a presente Carta, para alguns pontos essenciais da doutrina da Igreja acerca do Ministro da Eucaristia, os quais têm vindo a ser transmitidos pela Tradição viva e a ser expressos em precedentes documentos do Magistério. Supondo aqui a visão integral do ministério sacerdotal, como é apresentada pelo Concílio Vaticano II, a Congregação considera urgente, na situação atual, uma intervenção esclarecedora sobre esta função essencial e peculiar do Sacerdote.

2. Opiniões errôneas 

1. Os fautores das novas opiniões afirmam que toda e qualquer comunidade cristã, pelo fato de se reunir em nome de Cristo e, portanto, de se beneficiar da sua presença (cf. Mt 18,20), estaria dotada de todos os poderes que o Senhor quis conceder à sua Igreja.

Opinam ainda que a Igreja é apostólica no sentido de que todos aqueles que pelo santo Batismo foram purificados e nela incorporados e tornados participantes do múnus sacerdotal, profético e real de Cristo, seriam também realmente sucessores dos Apóstolos. E, uma vez que nos mesmos Apóstolos está prefigurada toda a Igreja, seguir´se´ia daí que também as palavras da instituição da Eucaristia a eles dirigidas, seriam destinadas a todos.

2. Daqui se seguiria igualmente que, por muito necessário que seja para a boa ordem da Igreja o ministério dos Bispos e dos Presbíteros, ele não se diferenciaria do sacerdócio comum por um motivo de participação do Sacerdócio de Cristo no sentido estrito, mas somente em razão do exercício. 0 chamado ofício de dirigir a comunidade ´ o qual inclui também o múnus de pregar e de presidir à sagrada ´Sinaxe´ ´ seria um simples mandato conferido tendo em vista o bom funcionamento da mesma comunidade, mas não deveria ser ´sacralizado´. 0 chamamento a tal ministério não acrescentaria uma nova capacidade ´sacerdotal´ no sentido estrito ´ e é por isso que a maior parte das vezes se evita até o termo ´sacerdócio´ ´ nem imprimiria um caráter que constitua alguém ontologicamente na condição de ministro, mas tão somente expressaria diante da comunidade que a capacidade inicial conferida no sacramento do Batismo se torna efetiva.

3. Em virtude da apostolicidade de cada comunidade local, em que Cristo estaria presente não menos do que na estrutura episcopal, qualquer comunidade, por mais pequena que seja, se viesse a encontrar´se privada durante muito tempo daquele seu elemento constitutivo que é a Eucaristia, teria a possibilidade de respropriar´se do seu poder originário e teria o direito de designar o próprio presidente e animador, outorgando´lhe todas as faculdades necessárias para ele passar a ser o guia da mesma comunidade, sem excluir a de presidir e de consagrar a Eucaristia. Ou então ´ afirma´se ainda ´ o próprio Deus não se recusaria a conceder, em semelhantes circunstâncias, mesmo sem o Sacramento, o poder que normalmente concede mediante a Ordenação sacramental.

Leva também à mesma conclusão o fato de que a celebração da Eucaristia muitas vezes é entendida simplesmente como um ato da comunidade local reunida para comemorar a última Ceia do Senhor mediante a fração do pão. Seria, por conseguinte, mais um convívio fraterno, no qual a comunidade se reúne e se exprime, do que a renovação sacramental do Sacrifício de Cristo, cuja eficácia salvífica se estende a todos os homens, presentes e ausentes, vivos e defuntos.

4. Por outro lado, em algumas regiões as opiniões errôneas sobre a necessidade de Ministros ordenados para a celebração da Eucaristia, induziram alguns a atribuir cada vez menor valor à catequese sobre os sacramentos da Ordem e da Eucaristia.

3. A doutrina da Igreja 

1. Embora sejam propostas de formas bastante diversas e matizadas, as referidas opiniões convergem todas na mesma conclusão: que o poder de realizar o sacramento da Eucaristia não está necessariamente ligado com a Ordenação sacramental. E é evidente que esta conclusão não pode coadunar´se de maneira nenhuma com a fé transmitida, dado que não só nega o poder confiado aos Sacerdotes, mas também deprecia toda a estrutura apostólica da Igreja e deforma a própria economia sacramental da Salvação.

2. Segundo o ensino da Igreja, a Palavra do Senhor e a Vida divina por Ele proporcionada estão destinadas, desde o princípio, a ser vividas e participadas num único corpo, que o próprio Senhor para si edifica ao longo dos séculos. Este corpo, que é a Igreja de Cristo, dotado continuamente por Ele com os dons dos ministérios, ´bem alimentado e bem coeso por meio de junturas e de ligamentos, recebe o desenvolvimento desejado por Deus´ (Col. 2,19). Esta estrutura ministerial na sagrada Tradição concretiza´se nos poderes outorgados aos Apóstolos e aos seus sucessores, de santificar, de ensinar e de governar em nome de Cristo.

A apostolicidade da Igreja não significa que todos os fiéis sejam Apóstolos, nem sequer de um modo coletivo; e nenhuma comunidade tem o poder de conferir o ministério apostólico que fundamentalmente é outorgado pelo próprio Senhor. Quando a Igreja se professa apostólica nos Símbolos da fé, portanto, exprime, além da identidade doutrinal do seu ensino com o ensino dos Apóstolos, a realidade da continuação do múnus dos Apóstolos mediante a estrutura da sucessão, por meio da qual a missão apostólica deverá perdurar até o fim dos séculos.

Esta sucessão dos Apóstolos que faz com que toda a Igreja seja apostólica, constitui parte da Tradicão viva, que foi, desde o princípio, e continua a ser para a mesma Igreja a sua forma de vida. Por isso, afastam´se do reto caminho aqueles que opõem a esta Tradição viva algumas partes isoladas da Escritura, das quais pretendem deduzir o direito a outras estruturas.

3. A Igreja Católica, que cresceu no decorrer dos séculos e continua a crescer pela vida que lhe doou o Senhor com a efusão do Espírito Santo, manteve sempre a sua estrutura apostólica, sendo fiei à tradição dos Apóstolos, que nela vive e perdura. Ao impor as mãos aos eleitos com a invocação do Espírito Santo, ela está cônscia de administrar o poder do Senhor, o qual torna participantes de modo peculiar os Bispos, sucessores dos Apóstolos, da sua tríplice missão sacerdotal, profética e real. E os Bispos, por sua vez, conferem, em grau diferente, o ofício do seu ministério a diversos outros na Igreja.

Portanto, ainda que todos os batizados possuam a mesma dignidade diante de Deus, na comunidade cristã, que o seu divino Fundador quis hierarquicamente estruturada, existem desde os seus primórdios poderes apostólicos específicos, que dimanam do sacramento da Ordem.

4. Entre estes poderes, que Cristo confiou de maneira exclusiva aos Apóstolos e aos seus sucessores, figura o de realizar a Eucaristia. Somente aos Bispos e aos Presbíteros, a quem os mesmos Bispos tornaram participantes do próprio ministério, está reservada a faculdade para renovar no Ministério eucarístico aquilo mesmo que Cristo fez na última Ceia.

A fim de poderem exercer as próprias funções, especialmente a tão importante função de realizar o Ministério eucarístico, Cristo Senhor marca espiritualmente aqueles que chama ao Episcopado e ao Presbiterado com um sigilo, chamado também, em documentos solenes do Magistério, ´caráter´, e configura´os de tal modo consigo próprio que, ao pronunciarem as palavras da consagração, não agem por mandato da comunidade, mas sim ´in persona Christi´, o que quer dizer algo mais do que ´em nome de Cristo´ ou ´fazendo as vezes de Cristo´, dado que o celebrante, por uma razão sacramental particular, se identifica com o ´sumo e eterno Sacerdote´, que é o autor e o principal Agente do seu próprio Sacrifício, no que não pode na realidade ser substituído por ninguém.

Uma vez que faz parte da própria natureza da Igreja que o poder de consagrar a Eucaristia seja outorgado somente aos Bispos e aos Presbíteros, os quais são constituídos Ministros para isso, mediante a recepção do sacramento da Ordem, a mesma Igreja professa que o Ministério eucarístico não pode ser celebrado em nenhuma comunidade a não ser por um Sacerdote ordenado, conforme ensinou expressamente o Concílio Ecumênico Lateranense IV.

A cada um dos fiéis ou às comunidades que por motivo de perseguição ou por falta de Sacerdotes se vejam privadas do celebração da Sagrada Eucaristia, durante breve tempo ou mesmo durante um período longo, não faltará, de alguma maneira, a graça do Redentor. Se estiverem animados intimamente pelo voto do Sacramento e, unidos no oração com toda a Igreja, invocarem o Senhor e elevarem para Ele os próprios corações, tais fiéis e comunidades vivem, por virtude do Espírito Santo, em comunhão com a Igreja, corpo vivo de Cristo, e com o mesmo Senhor. Mediante o voto do Sacramento em união com a Igreja, ainda que estejam muito afastados externamente, estão unidos a ela íntima e realmente e, por isso, recebem os frutos do Sacramento; ao passo que aqueles que procuram atribuir´se indevidamente o direito de realizar o Ministério eucarístico, acabam por fechar em si mesma a própria comunidade.

A consciência disto não dispensa, contudo, os Bispos, os Sacerdotes e todos os membros da Igreja do dever de pedir ao ´Senhor da messe que mande trabalhadores´ segundo as necessidades dos homens e dos tempos (cf. Mt 9,37ss), e de se aplicarem com todas as forças para que seja ouvida e acolhida, com humildade e generosidade, a vocação do Senhor ao Sacerdócio ministerial.

4. Exortação à vigilância 

Ao propor à atenção dos Pastores sagrados da Igreja estes pontos, a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé tem o desejo de prestar´lhes um serviço no seu ministério de apascentar a grei do Senhor com o alimento da verdade, de guardar o depósito da fé e de conservar íntegra a unidade da Igreja. É necessário resistir, firmes na fé, ao erro, mesmo quando este se apresenta sob as aparências de piedade, para poder abraçar com a caridade do Senhor os que erram, professando a verdade na caridade (cf. Ef 4,15). Os fiéis que atentam a celebração da Eucaristia à margem do vínculo da sucessão apostólica, estabelecido com o sacramento da Ordem, excluem´se a si mesmos da participação na unidade do único corpo do Senhor e, por conseqüência não nutrem nem edificam a comunidade, mas destroem´na.

Incumbe, pois, aos Pastores de almas o múnus de vigiar, para que na catequese e no ensino da Teologia não continuem a ser difundidas as opiniões errôneas acima mencionadas e especialmente para que elas não encontrem aplicação concreta na prática; e, se porventura se dessem casos do gênero, incumbe´lhes o sagrado dever de os denunciar como totalmente estranhos à celebração do Sacrifício eucarístico e ofensivos da comunhão eclesial. E têm o mesmo dever em relação àqueles que diminuem a importância central dos sacramentos da Ordem e do Eucaristia para a Igreja. Também a eles, efetivamente, são dirigidas estas palavras: ´Prega a palavra, insiste tempo e fora de tempo, confuta, exorta com toda a longanimidade e desejo de instruir... Vigia atentamente, resiste à provação, prega o Evangelho e cumpre o teu ministério´ (2 Tim 4,2´5).

Que a solicitude colegial encontre, pois, nestas circunstâncias, uma aplicação concreta, de modo que a Igreja, mantendo´se indivisa, mesmo dada a sua variedade de Igrejas locais que colaboram conjuntamente, guarde o depósito que lhe foi confiado por Deus através dos Apóstolos. A fidelidade à vontade de Cristo e a dignidade cristã exigem que a fé transmitida permaneça a mesma e assim proporcione a todos os fiéis a paz na fé (cf. Rom 15,13).

0 Sumo Pontífice João Paulo II, em Audiência concedida ao abaixo´assinado Cardeal Prefeito, aprovou a presente Carta decidida na reunião ordinária desta S. Congregação e ordenou a sua publicação.

Roma, da Sede da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, aos 6 dias do mês de agosto, Festa da Transfiguração do Senhor do ano de 1983.

Joseph Card. Ratzinger Prefeito

d. fr. Jérôme Hamer, O.P.

Arcebispo tit. de Lonum

Secretário

Como se vê, o texto da Santa Sé compreende quatro partes:

Introdução ou apresentação do documento;

O problema subjacente;

A doutrina da Igreja;

Convite à vigilância.

Examinemos sumariamente o problema e a respectiva resposta da Igreja.

1. 0 problema 

Em sua última ceia, celebrada tão somente com os doze apóstolos, Jesus consagrou o pão e o vinho e transmitiu aos Apóstolos a ordem de repetir o que Ele tinha feito ´em memória de Mim (Jesus)´; cf. Lc 22,19; lCor 11,23´25. 0 Senhor, desta maneira, instituiu a Eucaristia, que, segundo entendeu a Tradição cristã desde as suas origens, é a perpetuação do sacrifício da Cruz; é uma re´presentação (no sentido etimológico de tornar de novo presente) do sacrifício do Calvário, para que a Igreja, isto é, os fiéis, sob a presidência de um ministro devidamente ordenado (como os Apóstolos o foram), possam tomar parte desse sacrifício ou desse ato de entrega de Cristo ao Pai. No Calvário, Jesus se ofereceu, a sós, ao Pai; na Eucaristia, Ele se oferece com a sua Igreja.

Em todos os tempos, a Igreja entendeu que a celebração da Eucaristia é função própria dos Apóstolos e dos ministros que, pelo sacramento da Ordem, participam especialmente do sacerdócio de Cristo. Aliás, Jesus na última cela só tinha os Apóstolos como convivas e só a eles deu a ordem de repetir o seu gesto.

Nos últimos anos, porém, tem´se espalhado a concepção de que também os leigos, não ordenados presbíteros, podem confeccionar a Eucaristia. Esta tese é fundamentada pelos seus arautos em razões teológicas assim concebidas:

Toda comunidade cristã, pelo fato de se reunir em nome de Cristo, beneficia´se da presença prometida pelo próprio Senhor: ´Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estarei no meio deles´ (Mt 18,20). Por conseguinte, acha´se dotada de todos os poderes que o Senhor quis conceder à sua Igreja, entre os quais está o de celebrar a S. Eucaristia.

Todos os cristãos são, pelo Batismo, feitos participantes das funções sacerdotal, profética e régia de Cristo, como os Apóstolos; são, portanto, sucessores dos Apóstolos. Por conseguinte, também a eles se dirige a Palavra do Senhor: ´Fazei isto em memória de Mim´.

0 sacerdócio dos Bispos e dos presbíteros não se diferencia do sacerdócio comum de todos os fiéis por diferença essencial, mas apenas pelo fato de que aos Bispos e presbíteros a comunidade eclesial confere o mandato de exercer tal sacerdócio para o bom funcionamento da comunidade. A habilitação para consagrar a Eucaristia se torna efetiva, por desejo da comunidade, nos Bispos e presbíteros, ao passo que permanece potencial nos demais fiéis.

A conseqüência destas ponderações é que, desde que a comunidade eclesial se veja privada da Eucaristia por falta de presbítero, ela pode reapropriar´se do seu poder originário, designando o seu presidente e animador, dotado de todas as faculdades necessárias para consagrar a Eucaristia.

Tais idéias são ainda favorecidas pelo fato de que não poucos autores ou grupos cristãos consideram a Eucaristia um convívio fraterno (ágape) mais do que a perpetuação do sacrifício de Cristo, oferecido pela Igreja com Cristo em favor de vivos e defuntos. Aliás, nota´se, no Brasil mesmo, que jovens católicos que começam a conviver entre si (por exemplo, como colegas da mesma turma de Filosofia ou Teologia), alegam não querer ou não poder celebrar a Eucaristia porque ´não têm o que celebrar´; preferem aguardar que haja mais entrosamento e senso fraterno entre eles para ter algo a celebrar, como se a Eucaristia fosse simplesmente a celebração do amor fraterno existente entre os homens.

Ainda em conseqüência de quanto foi dito, verifica´se que na catequese se atribui cada vez menos valor aos sacramentos da Eucaristia e da Ordem, a fim de dar uma dimensão menos ´ritual´ e mais social ou vivencial ao Cristianismo ´ o que redunda num Cristianismo secularizado, que vale tanto quanto a praxis ou a ação social transformadora dos seus membros.


2. Um espécimen brasileiro 

Dentro da literatura teológica do Brasil, encontra´se um espécimen representativo das concepções em pauta. Tenha´se em vista a obra ´Eclesiogênese´ de Frei Leonardo Boff OFM.

Neste livro, o autor considera algumas Questões Disputadas, entre as quais ´0 Leigo e o Poder de celebrar a Ceia do Senhor´ (ef. pp. 73´81, Ed. Vozes, Petrópolis 1977).

Antes do mais, o autor expõe o problema para o qual procura ´uma saída´ (p. 77):

´Evidentemente toda comunidade organizada terá seus ministros consagrados. Mas que fará uma comunidade, que sem culpa e por longo tempo se vê privada do mistério eucarístico, sacramento de unidade e de salvação? As CEBs mostram que o leigo pode fazer tudo o que, pastoralmente, um sacerdote faz. Apenas não pode consagrar e perdoar os pecados. ´0 povo pergunta: por que nós não podemos celebrar a Eucaristia?´ (Mesters, C., ´0 futuro de nosso passado´, em Uma Igreja que nasce do povo, op. cit., 137). Sabemos da existência de grupos nos quais o chefe da comunidade, por delegação dela ad hoc, unido à Igreja universal, preside à ceia do Senhor. Que valor possui tal gesto? Diz´nos um relatório dos EUA: ´Porque eles procuram novos ministérios, os católicos comunitários não se sentem completamente ligados ao passado. Eles sabem que é o Senhor que renova tudo pela sua própria Palavra (Ap 21,5). Se o grupo acha que deve se reunir para o partir do pão, nem sempre se preocupa em ter um sacerdote; eles fazem o que têm que fazer. E, se forem perguntados se o que eles fizeram era sacramento ou missa, provavelmente responderão que não sabem. Tomarão isso como uma pergunta teológica e deixarão assim aos teólogos dizerem o que é que eles fizeram. Em todo caso, eles não se sentem compelidos a fazer nenhuma reivindicação nesse sentido´ (R. Westley, ´Comunidades de base nos Estados Unidos´, em Concilium 104, 18).

Que poderá e talvez também deverá dizer a teologia? ... As CEBs caminham para uma legítima autonomia e uma expressão sacramental cada vez mais completa. A recepção do sacramento eucarístico, onde se expressa e se cria a unidade da comunidade, é de direito divino. Pode um direito eclesiástico obstaculizá´la?´ (ob. cit. pp. 73s).

A seguir, o teólogo franciscano observa que proporá um theologuenon ou uma teoria teológica, e não ´uma solução que deva ganhar o consenso de todos... Não queremos com esta reflexão incentivar eucaristias sem os ministros ordenados... Trata´se... de ajuizar teologicamente sobre aqueles que, presidindo uma comunidade, sofrendo pela ausência da Eucaristia e desejando´a, em comunhão com toda a Igreja, se sentem movidos pelo Espírito a celebrar a ceia do Senhor, embora sejam carentes de poder sagrado pelo sacramento da Ordem. Que valor possui esta ceia do Senhor? Que poderá dizer a teologia, não a priori, mas sobre este fato´ (p. 74).

Dito isto, Frei Leonardo expõe o seu modo de ver, que ele mesmo chama ´hipótese´ (p. 79):

´Cremos possuir dados teológicos suficientemente assegurados para avançar a seguinte hipótese:

· a comunidade está, pela reta doutrina, na fé e no sucessão apostólica;

· a comunidade toda, mercê da fé e do batismo, é constituída como comunidade sacerdotal; nela Cristo está presente exercendo sua função sacerdotal;

· a comunidade toda é Sacramento universal de salvação, porque é presença local da igreja universal;

· a comunidade está, por seus coordenadores, em comunhão com as demais igrejas irmãs e com a Igreja universal;

· quer ardentemente o sacramento da Eucaristia;

· vê´se privada por longo tempo, e de forma irremediável, do ministro ordenado;

· não tem culpa do fato, nem expulsou de seu seio o sacerdote.

Então a comunidade em função disto tudo:

· pelo votum (pelo desejo) já tem acesso à graça eucarística (res);

· pela celebração da ceia, por seu coordenador não´ordenado, tem também os sinais sacramentais (res et sacramenturri);

· ela, assim nos parece, celebraria verdadeira, real e sacramentalmente a Eucaristia; Cristo presente, mas invisível, far´se´ia, na pessoa do coordenador não´ordenado, sacramentalmente visível;

· embora haja presença sacramental do Sumo Sacerdote Jesus Cristo, o sacramento é incompleto, porque falta a ordenação ao sagrado ministério presbiteral. A Igreja universal, sacramento raiz de todos os demais sacramentos tornaria válido, por via da ´economia´ (suppiet Ecclesia cf. Congar, Y., ´Propos en vue d´une théologie de l´économie dans la tradition latine´, em Irénikon 1972, 155´207), o rito eucarístico celebrado na comunidade, expressão local do Igreja universal;

· o celebrante não´ordenado seria ministro extraordinário do sacramento da Eucaristia.

Talvez não se devesse chamar a isso de missa, pois missa é uma categoria bem definida, teologicamente. Melhor faríamos denominá´la de celebração da Ceia do Senhor. Não se deveria reproduzir o rito litúrgico da santa missa, que tem seu contexto litúrgico, histórico e oficial estabelecido. Mas dever´se´ia preferir um rito organizado pela comunidade, nascendo de sua capacidade criadora, dentro do qual houvesse a celebração da Ceia do Senhor´ (pp. 79s).

0 texto transcrito suscita várias interrogações, entre as quais a de saber qual a diferença entre Missa e Cela do Senhor, no entender de Frei Leonardo. A fé sempre ensinou que a Ceia do Senhor celebrada na quinta´feira santa foi a primeira Missa da história, que Jesus mandou repetir através dos séculos. A fé também ensina que o sacrifício da Cruz é feito presente sobre os altares dentro da moldura de uma ceia, pois Jesus se serviu do ritual de uma ceia para entregar aos Apóstolos o sacrifício do seu corpo e do seu sangue.

Em suma, os dizeres até aqui propostos habilitam o leitor perceber vivamente a problemática que a S. Congregação para a Doutrina da Fé houve por bem considerar em sua Carta de agosto pp. Por conseguinte, pergunta´se:

3. Que diz a Igreja? 

Já aos 15/02/1975, a S. Congregação para a Doutrina da Fé teve que censurar a opinião do teólogo suíço Hans Küng (posteriormente destituído do título de mestre da doutrina católica) nos seguintes termos:

´A opinião, insinuada pelo Prof. Küng no livro Die Kirche, segundo a qual a Eucaristia, pelo menos em caso de necessidade, pode ser consagrada validamente por pessoas batizadas carentes da Ordem sacerdotal, não pode estar de acordo com a doutrina dos Concílios do Latrão IV e do Vaticano II´ (cf. SEDOC 7,1975, 1236).

De novo, em 1983 a S. Congregação para a Doutrina da Fé volta ao assunto, lembrando os seguintes pontos:

0 Senhor Jesus instituiu a sua Igreja como um Corpo, no qual há diversos membros e diversas funções ou ministérios:

· ´Vós sois o Corpo de Cristo e sois seus membros, cada um por sua parte´ (1Cor 12,27).

· ´Ele concedeu a uns ser apóstolos, outros profetas, outros evangelistas, outros pastores e mestres, para aperfeiçoar os santos em vista do ministério, para a edificação do Corpo de Cristo´ (Ef 4,11 s).

Donde se vê que, dentro da diversidade de funções existente na Igreja, o ministério do presbítero e o do Bispo têm significado próprio, que não pode ser reduzido ao do serviço de outros fiéis.

A delegação para o ministério sagrado, por conseguinte, não é simplesmente conferida pela comunidade, mas vem da parte do Senhor Jesus mediante o sacramento da Ordem. Este sacramento comunica participação no sacerdócio de Cristo que difere do sacerdócio comum dos fiéis de modo essencial:

· ´0 sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial ou hierárquico ordenam´se um ao outro, embora se diferenciem na essência, e não apenas em grau. Pois ambos participam, cada qual a seu modo, do único sacerdócio de Cristo. 0 sacerdote ministerial, pelo poder sagrado de que goza, forma e rege o povo sacerdotal, realiza o sacrifício eucarístico na pessoa de Cristo e o oferece a Deus em nome de todo o povo´ (Constituição Lumen Gentium nº 10).

· ´São instituídos em nome de Cristo aqueles dentre os fiéis que são assinalados pela Sagrada Ordem, a fim de apascentarem a Igreja pela palavra e pela graça´ (ib., nº 11 ).

É de notar, aliás, que a Igreja não deve ser concebida como uma ´sociedade democrática´, na qual o poder compete ao povo e é por este delegado aos seus representantes. Tal foi, sem dúvida, a tendência dos reformadores protestantes do século XVI. A fé católica ensina que a Igreja é sacramento... ´sacramento da unidade dos homens entre si e com Deus´ (cf. Lumen Gentium nº 1). Ora sacramento é um sinal sensível que significa e comunica a graça de Deus.

Neste sentido a teologia professa que a santissima humanidade de Cristo é o sacramento primordial, pois em Cristo´homem estava depositada a vida do próprio Deus, que transparecia e se comunicava através das palavras e dos gestos do Senhor Jesus.

Em segunda instância, a Igreja é Sacramento, ou seja, uma realidade sensível, de face humana, que é portadora e comunicadora da graça divina. Por ela passa a vida que vem do Pai, se derrama na humanidade de Cristo e se destina finalmente a cada um dos homens mediante ulteriores sacramentos que são o Batismo, a Crisma, a Eucaristia, a Reconciliação, a Unção dos Enfermos, a Ordem e o Matrimônio.

É tal fluxo da vida divina procedente do Pai para atingir cada cristão que o gráfico anexo esquematiza [...]: nele se vê a ordem sacramental, ou seja, a ´ grande realidade sacramental que compreende a humanidade de Cristo, o corpo de Cristo prolongado que é a Igreja, e os sete ritos ditos ´sacramentos´ em sentido mais estrito. Se, pois, a Igreja é um sacramento, verifica´se que as funções e os ministérios não têm sua fonte nos homens ou no ´povo de Deus´, mas no próprio Deus. As três pessoas da SS. Trindade, querendo doar´se aos homens, seguem a lei da ´encarnação´, isto é, vão utilizando elementos sensíveis e humanos para chegar a todos os homens. É por isto que não se pode equiparar a Igreja a uma democracia; nem é lícito tender a transformar a Igreja em tal forma de convívio humano, pois isto equivaleria a destruir a Igreja ou a fazer dela um aglomerado de pessoas bem intencionadas... e mais nada.

Não compete aos homens outorgar o que só o próprio Cristo pode conceder. Nem ao Papa nem aos Bispos é lícito derrogar às instituições sacramentais atribuindo (por via ordinária ou extraordinária) ao cristão apenas batizado as faculdades que o sacramento da Ordem (instituído por Cristo) confere. Por isto não se pode dizer que, na falta de um presbítero, quando um leigo consagra o pão e o vinho, Ecclesia, supplet a Igreja supre, outorgando a tal leigo a faculdade de celebrar a consagração eucarística; nem a hierarquia (os Bispos) nem a comunidade de leigos pode conceder tal habilitação a uma pessoa não devidamente ordenada por Cristo mediante o sacramento da Ordem. Este não é apenas o desligamento de poderes que o Batismo já conferiu (e que, portanto, estariam latentes em todo cristão), mas é um novo modo de inserção do cristão dentro do sacerdócio de Cristo para que possa realizar o que nenhum cristão pode efetuar em virtude do seu Batismo.

A apostolicidade da Igreja não quer dizer que cada um dos seus membros tenha as faculdades de que dispunham os Apóstolos. Isto seria ignorar que a Igreja é diversificada em seus misteres, como todo corpo é diversificado em seus membros. A apostolicidade da Igreja significa que a Igreja está em continuidade com os Apóstolos, seja porque professa a mesma doutrina que os Apóstolos, seja, porque, através da sucessão apostólica, o ministério dos Apóstolos vai sendo transmitido de geração a geração àqueles que recebem o sacramento da Ordem. Ao lado da transmissão que se faz pelo sacramento da Ordem, há ainda aquela que ocorre mediante os outros sacramentos, dando origem a funções diferentes daquelas do sacerdócio ministerial.

De quanto foi dito, depreende´se que, se uma comunidade resolve designar um de seus membros para consagrar a Eucaristia, não pode dizer que está em comunhão com a Igreja universal, pois, precisamente ao proceder assim, tal comunidade rompe com a doutrina e a praxe da Igreja universal.

Podem´se completar estas considerações da Carta de 06/08/83 com as ponderações do Concílio do Vaticano II relativas aos diversos modos como Cristo se torna presente na sua Igreja. Com efeito, distingue a Constituição Sacrosanctum Concilium nº 7 cinco modalidades de presença de Cristo entre os homens:

´Cristo está sempre presente em sua Igreja, sobretudo nas ações litúrgicas. Presente está no sacrifício da Missa, tanto na pessoa do ministro, pois aquele que agora oferece pelo ministério dos sacerdotes é o mesmo que outrora se ofereceu na cruz, quanto sobretudo sob as espécies eucarísticas. Presente está pela sua força nos sacramentos, de tal forma, que, quando alguém batiza, é Cristo mesmo quem batiza. Presente está pela sua palavra, pois é Ele mesmo, que fala quando se lêem as Sagradas Escrituras na Igreja. Está presente finalmente quando a Igreja ora e salmodia, Ele que prometeu: ´Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, aí estarei no meio deles´ (Mt 18,20).

Em síntese, diz´nos o Concilio que Cristo se faz presente:

· na Eucaristia: este é o modo, por excelência, da presença de Cristo (maxime sub speciebus euchaxisticis);

· nos sacramentos: quem batiza, quem absolve os pecados... é Cristo;

· na pessoa do ministro sagrado;

· na Palavra consignada nas Escrituras Sagradas;

· por ocasião da oração comunitária da Igreja; cf. Mt 18,20.

Como se vê, o texto de Mt 18,20 é citado pelo Concílio, texto que também as novas teorias evocam. Todavia o Concílio não deduz dessa presença de Cristo numa comunidade orante a conclusão de que todos os membros dessa comunidade possuem indistintamente o mesmo grau de participação do sacerdócio de Cristo. Ao contrário, a diversidade de participação do sacerdócio de Cristo é realçada quando o texto conciliar se refere particularmente ao ministro da celebração eucarística.

0 caso das comunidades ameaçadas de ficar sem Eucaristia por falta de presbíteros não é argumento para se instaurarem ´celebrantes´ delegados da assembléia. Não compete aos homens retocar a estrutura da Igreja instituída pelo Senhor Deus; qualquer tentativa de alterar a essência da Igreja seria sacrílega e inválida. 0 que se pode propor no caso, é o seguinte:

· procurem os fiéis, sem Missa, unir´se espiritualmente à Eucaristia celebrada em outras partes do mundo. ´Não lhes faltará a graça do Redentor... Mediante o voto do sacramento em união com a Igreja, ainda que estejam muito afastados externamente, estão unidos a ela íntima e realmente, e, por isso, recebem os frutos do sacramento´.

os Srs. Bispos, em conformidade com a Santa Sé, têm instituído ministros extraordinários da Comunhão Eucarística. Estes podem distribuir o sacramento da

· Eucaristia (embora não celebrem a Missa) após a Liturgia da Palavra devidamente realizada. Assim pode tornar´se cada vez mais raro o caso de alguma comunidade ficar privada da Eucaristia.

É claro que estas formas de resolver o problema não dispensam os Bispos, os sacerdotes e os fiéis de rezar para que se multipliquem as vocações sacerdotais, e de contribuir com seus esforços para que o chamado do Senhor nos corações de jovens e adultos encontre os meios necessários para chegar à plena realização.

Na verdade, a função dos Ministros Extraordinários da Comunhão Eucarística não foi afetada pela Carta da Santa Sé em foco. Como dito, a problemática não versa sobre a distribuição da S. Eucaristia, mas sobre a consagração eucarística por parte de leigos. A figura dos Ministros Extraordinários da Comunhão Eucarística, foi confirmada pelo Novo Código de Direito Canônico, que reza:

´Cânon 910 ´ § 1º Ministro ordinário da Sagrada Comunhão é o Bispo, o presbítero e o diácono.

§ 2º Ministro extraordinário da Sagrado Comunhão é o acólito ou outro fiel designado de acordo com o cân. 230, § 3º´.

Eis o teor do Canon 230, § 3º mencionado:

´Onde a necessidade da Igreja o aconselhar, podem também os leigos, na falta de ministros, mesmo não sendo leitores ou acólitos, suprir alguns de seus ofícios, a saber, exercer o ministério da palavra, presidir às orações litúrgicas, administrar o batismo e distribuir a Sagrada Comunhão, de acordo com as prescrições do Direito´

Observam os comentadores que este último Canon não reserva os referidos ministérios aos homens apenas, mas, falando de leigos (laici) compreende tanto homens como mulheres.

Não se pode negar que os fiéis católicos têm o direito, concedido por Deus, de participar da S. Eucaristia. Quando a Igreja ensina que essa participação só pode ocorrer mediante o ministério de um presbitero devidamente ordenado, Ela não está criando um direito eclesiástico que se oponha ao direito divino; tal não compete à Igreja. Está simplesmente transmitindo aquilo que Cristo lhe entregou: o poder de consagrar a Eucaristia foi concedido apenas aos doze Apóstolos presentes à última ceia; Cristo assim instituiu O sacerdócio ministerial, precisamente para que a Eucaristia pudesse ser celebrada através dos séculos.

Na verdade, a habilitação para consagrar o pão e o vinho eucaristicos não é uma questão de autorização ou de direito apenas (como o pregar em alguma igreja pode depender de autorização do Bispo local); com efeito, não é uma questão jurídica, mas é questão ontológica. Questão de ser ou não ser inserido adequadamente no sacerdócio de Cristo.

Por isto não se pode dizer que a Igreja, com seu direito eclesiástico, se torna obstáculo ao exercício de direitos conferidos aos fiéis por Deus. 0 assunto em pauta transcende à esfera discutível do direito, pois pertence ao plano ontológico.

A Eucaristia é, como dito, a perpetuação do sacrifício de Cristo sobre os altares para que a Igreja, dela participe. A união com Cristo assim efetuada acarreta conseqüentemente a união de cada um com os irmãos. Por isto, a Eucaristia é também fator de união e comunhão com os homens; mas ela só é tal se considerada, em primeiro plano, como elemento de união com o Senhor Jesus. Há sempre oportunidade de celebrar a Eucaristia entre, fiéis católicos, quer se conheçam, quer não se conheçam, ou independentemente do grau de relacionamento que os una entre si; para que a Eucaristia seja frutuosa, basta que os membros da assembléia tenham consciência de formar o Corpo de Cristo unificado pela mesma fé, pelo mesmo Batismo, pelo, mesmo amor, pela mesma esperança...

4. Vigilância 

Em sua parte final, a Carta da Santa Sé mostra que a atitude da Igreja, no caso, é um serviço... ´serviço de apascentar a grei do Senhor com o alimento da verdade e de conservar íntegra a unidade da Igreja´. Quem inova em ´coisas essenciais na Igreja, não edifica a comunidade, mas destrói a sua face humana´. Na verdade, não é possível alguém unir´se ao Corpo de Cristo por uma pretensa celebração da Eucaristia, se dilacera o Corpo do Senhor que é a Igreja.

Por conseguinte, incumbe aos Pastores o grave dever de vigiar para que não se difundam as errôneas idéias denunciadas na Carta, nem sejam aplicadas na prática das comunidades católicas. Toca´lhes também o dever de cuidar para que na catequese sejam congruamente valorizados os sacramentos da Ordem e da Eucaristia. É o Apóstolo quem exorta: ´Prega a palavra, insiste a tempo e fora de tempo, confuta, exorta com toda a longanimidade e o desejo de instruir. Vigia atentamente, resiste a provação, prega o Evangelho e cumpre o teu ministério´ (2Tm 4,2´5).

Com estas palavras, o Apóstolo incute uma missão que, sem dúvida, é árdua, mas se torna inevitável ao bom pastor, que pode chegar a ter que dar a vida por suas ovelhas.

5. Reflexão final 

As novas teses impugnadas pela S. Congregação para a Doutrina da Fé têm importância a mais de um título:

afetam o conceito da Igreja;

destroem a noção de Eucaristia.

Em última análise, elas se devem a duas fontes de inspiração:

o espírito democratizante de nossos dias, que tende a nivelar todas as funções na sociedade: assim como, segundo Paulo Freire, não há mais educador de educandos, assim também não haveria pastores ou autoridades propriamente ditas na sociedade e na Igreja; a eclesiologia protestante, que reduz a Igreja a uma Congregação, a qual muito se assemelha às demais sociedades humanas e, portanto, é mutável como é mutável a opção política ou a opção profissional de cada cidadão.

0 Concilio do Vaticano II respondeu às tendências democráticas do nosso tempo, utilizando a imagem de Povo de Deus para designar a Igreja. Tal imagem lembra a igualdade fundamental de todos os cristãos, baseada nos sacramentos do Batismo e da Crisma; todavia não exclui que, sobre a mesma base comum, se sobreponham vocações particulares incutidas pelo próprio Deus para a edificação do Corpo de Cristo; assim o próprio Sumo Pontífice, pelo fato de ser batizado, é um cristão como os demais, mas, por ter sido chamado por Deus a especial forma de pastoreio ou de construção da Igreja, distingue´se dos demais homens, não por arrogância pessoal, mas por servir fiel e humildemente a Deus e aos irmãos dentro do seu ministério próprio. Veja´se a Constituição Lumen Gentium, que apresenta no capitulo II a imagem do Povo de Deus; a seguir, explana as vocações particulares, que são a da hierarquia (c. III), a dos leigos (c. IV), a dos Religiosos (c. VI). O novo Código de Direito Canônico seguiu o mesmo esquema.

Em última análise, é a visão de fé que parece ressentir´se de oscilações em nossos dias, acarretando as dolorosas conseqüências apontadas no documento em pauta. Exorta o Senhor no Apocalipse:

´Guarda o que tens, para que ninguém arrebate a tua coroa´ (Ap 3,19).